Início Brasil Nosso novo (a)normal: a etiqueta do trabalho no pós-pandemia

Nosso novo (a)normal: a etiqueta do trabalho no pós-pandemia

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Nenhum de nós passou incólume pela pandemia. Por conta da necessidade de trabalhar à distância, novas práticas foram rapidamente incorporadas ao cotidiano. A comunicação se agilizou. De casa, tínhamos mais tempo. Contudo, esse tempo foi logo tomado por borbotões de ‘lives’ e encontros virtuais. No curso da quarentena, quando recebíamos um telefonema cuidando de matéria profissional, nosso interlocutor, ao introduzir o assunto, deixou de fazer singelas indagações preliminares, até então necessárias: “Onde você está? Ocupado? Pode falar?” O tema de discussão era prontamente apresentado. Afinal, estávamos todos em casa e, a princípio, livres para debater o que fosse. Há hábitos que não conseguimos largar. Outros abandonamos, sem remorso ou constrangimento, como calendários de anos passados. Trinta anos atrás, uma relação profissional – entre o advogado e seu cliente ou entre dois profissionais de negócio, por exemplo – possuía diversos filtros. O interessado na comunicação solicitava à sua secretária que ligasse para a secretária do outro. Comumente, por intermédio das secretárias, agendavam um encontro físico. Em alguns casos, antes disso, o interessado na consulta enviava um dossiê, um calhamaço de papel, ou um fac-símile, para que todos se inteirassem do tópico. Esse processo, iniciado com o desejo de estabelecer o contato e o efetivo encontro, demorava, pelo menos, alguns dias. Na liturgia então vigente, apenas quando as pessoas sentavam, olho no olho, discutiam-se os temas relevantes. Em raríssimas ocasiões, valia-se do telefone para discutir assuntos de maior complexidade ou delicadeza. Educávamos a urgência a respeitar os limites da possibilidade. No século XXI, com a revolução tecnológica, os dossiês físicos e o fax foram enterrados. Os documentos passaram a ser transferidos pelo correio eletrônico. Estavam ao alcance de um toque dos dedos, disponíveis no mesmo tempo em que o diabo esfrega os olhos. O caminho encurta. Também as secretárias deixaram de participar desse processo. Caiu esse filtro. Não se pode mais dizer que não recebeu um documento ou uma informação por culpa da secretária, do office boy ou de qualquer outro intermediário. Eles não existem mais. O uso do celular e do Whatsapp são outros fenômenos. Uma minoria jurássica segue se valendo do telefone fixo para se comunicar. Nos dias atuais, na maior parte das vezes, a ligação profissional se faz diretamente ao celular. A clássica resposta da telefonista – “Não se encontra” ou “Já foi embora” – tornou-se apenas uma curiosidade histórica. As pessoas e seus aparelhos celulares se transformaram numa coisa só. Uma simbiose. Eventualmente, indaga-se a quem atende se “pode falar” – com a mesma preocupação como se pergunta se a alguém vai bem, ou seja, um verniz de educação. Não se pergunta mais onde as pessoas estão. Com a banalização de se encontrar o profissional por meio do celular, não existe mais fronteira entre o escritório e a casa. Deixou de haver o conceito de expediente – para os mais jovens, vale a explicação: “expediente” era um horário determinado, dedicado às atividades profissionais, desempenhado num local de trabalho. Essa divisão entre a vida profissional e os momentos de lazer ou de outra ocupação ficou turva. Local de trabalho significa onde a pessoa estiver. Antes da pandemia, os encontros físicos eram o padrão. Excepcionalmente, admitia-se uma conferência de ligações telefônicas. A maioria das pessoas sequer conhecia os sistemas de salas virtuais. Para alguns, até mesmo sugerir uma videoconferência indicava a falta de comprometimento profissional. Raramente alguém contratava um prestador de serviço pelo telefone. A praxe era a de, ao menos num primeiro contato, promover uma reunião presencial, mormente em questões mais sensíveis, como a escolha de um gestor de patrimônio, um arquiteto ou um advogado. Esse costume se alterou a partir de março de 2020. Atualmente, a maior parte das reuniões profissionais se dá de modo virtual, sem que isso acarrete qualquer questionamento acerca da eficiência desse meio. Ao revés, quando um profissional solicita um encontro físico, logo lhe indagam qual seria a necessidade. O que era costume passou a ser exceção. Os hábitos mudaram. Pela telinha, as relações são mais frias e distantes. Uma piada numa reunião virtual se assemelha ao churrasco sem sal. Por melhor que seja o chiste, ele perde muito quando contado na telinha do computador. Não se capta um bom olhar, nem se pode sussurrar (porque nada se ouviria). Esses encontros, embora práticos, desumanizam a relação. Uma boa prova disso é verificar que se tornou raro aquele momento, que antecedia um encontro físico, no qual as pessoas falavam generalidades, trocavam ideias sobre a vida, narravam algum acontecimento pessoal (ou até mesmo íntimo). Agora, o tema do trabalho domina o encontro do começo ao fim. A pandemia – ainda bem – acabou. Já podemos circular. Contudo, a velocidade das relações profissionais segue no ritmo pandêmico. Os novos hábitos, incorporados durante a pandemia, tomaram conta de tudo. No curso da quarentena, quando nos acostumávamos com a nova realidade, falávamos do “novo normal”: trabalho à distância, reuniões virtuais em cascata, celulares fervendo pelo uso ininterrupto. Agora, vivemos o novo (a)normal: um mundo que gira mais rápido, no qual a informação vai ao nosso encontro, e em que o urgente grita mais alto do que o necessário.

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