Um relatório da ONU vai fazer um alerta sobre a decisão do governo de Jair Bolsonaro de restringir o trabalho de conselhos criados para servir de canal para a participação da sociedade civil na formulação e debate de políticas no país.
A referência está presente num documento preparado pela relatora especial da ONU sobre eliminação da discriminação contra pessoas afetadas pela hanseníase, Alice Cruz. Ela realizou uma missão ao Brasil e, em duas semanas, fará recomendações ao governo diante do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra.
Mas, num trecho do documento, ela tece críticas ao Decreto Presidencial nº 9759/2019. Publicado em abril de 2019, o instrumento estabelece uma mudança na existência dos conselhos colegiados, inclusive extinguindo alguns deles. Naquele momento, a ação do Planalto gerou duras críticas por parte de instituições e ativistas, além de ser interpretado como um ato de restrição da participação da sociedade civil no debate de políticas públicas. Tradicionalmente, é por meio desses órgãos que a sociedade civil pode apresentar propostas e debater com o governo ações em diferentes áreas sociais, como infância, direitos humanos, tortura e muitas outras.
O debate, agora, chega à ONU, em mais um exemplo da resistência internacional contra as práticas de direitos humanos adotadas pelo governo brasileiro. Segundo a relatora, o governo “regulamenta e limita os conselhos, que são órgãos colegiados públicos federais, e restringe o exercício das liberdades fundamentais e direitos, como a participação na tomada de decisões, monitoramento e prestação de contas”.
“Tais conselhos têm sido críticos para garantir os direitos civis e políticos consagrados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil é parte, e também abriram caminho para a participação em assuntos públicos de grupos marginalizados, como pessoas afetadas pela hanseníase”, disse.
“A eliminação desses mecanismos-chave reforçaria a exclusão desses indivíduos, constituindo um grande revés para seu gozo de direitos sociais, econômicos e culturais, e um retrocesso no que diz respeito à aplicação dos direitos humanos internacionais fundamentais”, afirma a relatora.
Omissão
Numa resposta submetida pelo governo brasileiro ainda em abril, o país esclarece que o “Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos observa que foram mantidos os conselhos criados por lei, notadamente os de seu Ministério, bem como outros órgãos colegiados, tais como o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência”.
A resposta, porém, omite a batalha legal que tem ocorrido nos bastidores. O Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência, por exemplo, foi alvo de uma tentativa do governo de modificar os integrantes do órgão, o que levou o Conselho a entrar com uma ação na AGU. Em janeiro de 2020, o parecer da entidade apontou que, de fato, os mandatos dos conselheiros deveriam ser mantidos e não poderiam ser alterados.
Outros conselhos com temas relacionados aos direitos humanos ainda estão funcionando graças a medidas judiciais, enquanto o governo passou a intervir diretamente na escolha de seus membros e até selecionar a presidência desses órgãos.
Recomendações
A relatora da ONU não deixa de destacar alguns avanços no combate à discriminação e no tratamento de pessoas afetadas pela hanseníase em governos anteriores. Mas faz alertas claros sobre a situação atual. Alguns dos centros identificados pela relatora estariam marcados pela “negligência alarmante”.
“Durante as últimas décadas do século 20, o Brasil liderou a eliminação da discriminação contra as pessoas afetadas pela hanseníase e seus familiares. Fundamental para esse papel pioneiro tem sido a Constituição baseada em direitos, o alto nível de conhecimento entre os pesquisadores de saúde do país e uma organização robusta de pessoas afetadas pela doença, o que atesta sua resiliência e engajamento cívico nos assuntos públicos”, escreveu a relatora.
“A estrutura normativa e institucional brasileira está qualificada para proteger, promover e cumprir os direitos das pessoas afetadas e de seus familiares. De especial relevância são as leis que combatem a linguagem discriminatória e compensam danos passados com uma medida permanente e especial baseada na reparação material”, indicou.
“Não obstante a igualdade jurídica, a discriminação de fato perdura em práticas institucionalizadas e relações sociais interpessoais”, alertou a relatora.
“As barreiras estruturais atuam como poderosos determinantes sociais da incidência da doença no país, acentuada pela autonomia regional e local na administração de recursos neste país quase continental e altamente diversificado”, indicou.
“Mecanismos que podem garantir a prestação de contas, canais acessíveis para o tratamento de queixas às autoridades competentes, acesso efetivo à justiça e fortalecimento dos órgãos colegiados participativos já existentes são fundamentais para garantir acesso equitativo à saúde, proteção social e direitos inter-relacionados”, completou.